O doutor Homero Fausto, ou simplesmente Homero Fausto, como a sobriedade de sua personalidade o condicionava a atuo-denominar-se, era o integrante da mesa que faltava ser apresentado e convidado a ocupar sua respectiva cadeira. Com a tranquilidade comum àquele que está para realizar a mais prosaica das atividades, como tomar um copo d’água, aguardava o anúncio com um enigmãtico sorriso; uma verdadeira Mona Lisa, dir-se-ia.
Alma boa por natureza, acreditava, no entanto, que a perfeição constituía característica estranha à espécie humana e, assim, entendia-se digno de uma existência sem culpa apesar de alguns defeitos que o inquinavam. Eis a justificativa ética para cultivar uma faceta sarcástica em seu caráter por todos reconhecido como respeitoso e sincero. Mais importante que isso, entendia prescindível indigitada justificativa, porquanto não tinha o sarcasmo na conta dos defeitos, não ao menos essencialmente. Na verdade, acreditava numa tal “função social” do sarcasmo, pois apostava neste como elemento refutador de afirmações duvidosas. Imperativo de sua eqüidade, fazia rotina, da mesma forma, o auto-sarcasmo, sempre que se flagrava em erro.
Homero Fausto era partidário da academia; respeitava-a e reconhecia-lhe crédito. No entanto, em enésimas ocasiões decepcionara-se com a pobreza de espírito proveniente de nomes precedidos por títulos de mestre, doutor, além de outros. A reiteração de referidos episódios levara-o a realizar uma análise mais acurada das fontes onde buscava conhecimento, de modo que para ele, um título deixara de indicar a garantia de qualidade para apenas representar mero indício desta. É claro que, como qualquer outro sistema, a academia era passível de falhas. Porém, não era isto que o levava a recusar este caminho. Sua aversão não tinha cunho ontológico ou conceitual; decorria, isso sim, era da inversão de valores que seus dias o faziam testemunhar, em que a generalização do vício transformou em regra o fato de o corpo docente de uma faculdade ser escolhido pela simples e mecânica contagem de certificados ao invés de uma criteriosa averiguação de conteúdo e capacidade didática.
Evidentemente, se a aversão que Homero Fausto nutria em relação à academia decorria só de distorções extrínsecas, havia como sentar-se naqueles bancos sem ser atingido pelo que ali havia de mal. Aliás, este constituía o caminho mais curto para tornar-se professor, seu eterno desejo. Entretanto, optara por não fazê-lo e isto por alguns motivos muito precisos. Em primeiro lugar, o conhecimento que ali obteria também poderia haurir com o auto-didatismo até então responsável por sua formação, ainda que tal significasse o dispêndio de mais esforço e tempo. Dessa forma, concluia que a academia era importante, mas não indispensável.
Corolário disso – e por uma questão de coerência -, considerava possível reunir cabedal suficiente para ser professor apenas com seus estudos particulares e, sendo assim, se algum corpo docente estivesse realmente interessado em sua capacidade, que é o que interessa (ou deveria interessar), aceitá-lo-ia, a despeito de não ser um mestre ou doutor. Não queria sufragar um sistema que considerava capenga. “Este que mude!”, costumava ponderar. Este era o seu segundo motivo.
Por fim, a despeito de ser seguidor de Kant, da Lógica e do pensamento a priori, e ainda, conquanto acreditar que o Direito é eminentemente teórico, tinha a convicção de que a experiência da advocacia tinha muito a acrescentar na formação dos novos pensadores que deveriam ser criados pela faculdade. Afinal, no dia-a-dia do fórum era por meio de advogados que o povo e seu respectivo mundo entrava na pauta do poder. Se o Direito instituía o poder para transformar a realidade do povo, então, aqui estava o seu momento alto, ao qual ninguém tinha contato comparável ao experimentado pelo advogado. “Se a academia soubesse disso”, pensava ele.
Claro que era suficientemente lúcido para perceber a inocuidade de sua conduta. Sabia que por aí perguntariam: “Quem é Homero Fausto para questionar o sistema? Se pelo menos fosse um mestre.”
Toda essa divagação durou apenas alguns segundos e dela a consciência o trouxe de volta ao auditório em que aquele congresso estava por se iniciar. Ele olhou ao redor e constatou a lotação de público, deduzindo disso que, em termos numéricos, o evento já era um sucesso, motivo de pronto regozijo para os integrantes da mesa. Então, lembrou-se de que cada um destes havia sido avaliado um dia, quando da obtenção de seus títulos. E lembrou-se de que naquela noite a platéia constituiria um novo juri, em cujo veredicto inexistiam o favoritismo, a condescendência, ou qualquer outro tipo de equívoco que ele sempre encontrou presente na academia hodierna. Ou o público encontrava conteúdo no que ouvia ou, então, o que se veria seriam bocejos e pessoas se retirando antes do fim, atos inequívocos de quem se rende ao enfado ou ao desejo de protestar. Para este juri os títulos nada valem.
Antes de ser chamado à mesa, houve tempo de Homero Fausto entregar-se a um último pensamento. É que não foram poucas as ocasiões em que, uma vez no púlpito, a platéia já era de número inferior àquele do começo do evento, quando da palavra de seus antecessores. E isso o levava a crer que por duas vezes, por duas formas diversas, o mundo tentava dar-lhe motivos para supor-se de valor inferior àquele que imaginava ter. Primeiro, quando insistia em valorar um pensador segundo seus títulos, os quais ele se recusava a ter; segundo, deixando de ouvir o que ele se propunha a dizer.
Sabia que tinha algo a expor e de quanto estudo e trabalho dedicara por esse algo. Sabia, também, que suas palavras eram compreendidas, pois havia sempre os que se propunham a combatê-lo. Assim, não por falha de conteúdo, tampouco da retórica, mas não poucas vezes encontrara menos ouvintes que os colegas titulados. Logo, não estava errado; a comunidade é que não pensava como ele. Mas isso não lhe era motivo de desânimo. É nessas horas que recobrava o exemplo dado por Sócrates, de um comandante que em seu navio, odiado por ser rigoroso e severo, foi subjugado pela tripulação. Uma vez “livre”, esta passou a conduzir a embarcação segundo o critério exclusivo da vontade, a qual deixara de se submeter aos sacrifícios impostos pela razão, para dar asas ao prazer, situação que se manteve até o previsível e inevitável naufrágio.
Assim, ele mantinha-se vigilante a fim de impedir que na embarcação que era seu espírito nenhum golpe conduzido pelo ego ou pelo sectarismo retirassem a consciência do posto que lhe cabia, o de comando. Esta era a razão que o fazia permanecer. Desde muito cedo aprendera que o verdadeiro mundo é o da consciência, e por isso, ninguém podia aferir-lhe ou certificar-lhe o valor.
Homero Fausto ouvira muitas vezes o quanto é árduo o caminho daquele que busca ser um mestre, um doutor. Mas só ele sabia o quão mais exigente era a caminhada de quem, nesses dias de “credencialismo”, um dia assumira a missão de demonstrar que o conhecimento não fica num pergaminho pendurado numa parede de escritório; ele acompanha a alma.
Então, ouviu-se a apresentação: Homero Fausto, sucedido de seu único título: advogado. E como esperava, o anúncio de seu nome, tão carente dos formais atestados, deu ensejo a uma cena que já lhe era conhecida; o despertar de olhares inconformados em que o corporativismo fazia de cada face uma voz da uníssona, acusadora e retórica indagação: Sem títulos?! Como?!
“Sim, sem títulos”, com grande satisfação ele respondia mentalmente para si mesmo. Quando tudo ao redor dele os exigia, em sua solidão ele sentia-se realizado por ser o patrono da causa que a consciência lhe confiara, a de demonstar que sua grandeza vinha de dentro e não era fruto do reconhecimento alheio. A tranqüilidade que o envolvia naquele momento, em contraste com a patente irresignação dos demais, era a prova de mais um dia de vitória em sua luta. Daí o enigmático sorriso sarcástico.